“Narradores de Javé” é uma narrativa sobre narrativas.
Lançado em 2003, com direção/roteiro de Eliane Caffé e roteiro de Luís Alberto
de Abreu, conta com José Dumont; Gero Camilo; Rui Resende; Luci Pereira; Nélson
Dantas; Nélson Xavier no elenco. É um dos filmes brasileiros mais premiados das
últimas décadas, além de suscitar ricas e variadas possiblidades de
interpretação.
O título do filme chama atenção por dois elementos essenciais
de seu enredo: “Javé”, cenário da história, cidade pobre do interior da Bahia,
que precisa ser salva de uma futura inundação, devido a construção de uma barragem
hidroelétrica; e “narradores”, substantivo no plural, que corresponde aos
habitantes dessa cidade, não apenas personagens, mas um conjunto dinâmico e
polifônico de vozes, materializações efêmeras das experiências e histórias do
povo. Portanto, o filme conta a luta de um povo para reconstituir a sua
história, através da oralidade, para salvar a sua cidade da inundação.
O protagonista do filme é o próprio ato de narrar. Isso
foi meticulosamente construído no roteiro de Caffé e Abreu. Quando nós narramos
uma história, abrimos conexões. É assim que os humanos se comunicam desde o
início dos tempos - contando histórias e nutrindo conexões. Contar histórias é
universal e tão antigo quanto a humanidade. Antes de haver escrita, havia o ato
de narrar. Ocorre em todas as culturas e em todas as épocas. Ela existe (e
existiu) para entreter, informar, educar e promulgar tradições e valores
culturais.
As pessoas, ao narrar histórias, dão forma as suas experiências e aos significados que essas experiências têm para suas vidas. Todas as culturas e sociedades também possuem suas próprias histórias sobre seu passado e seu presente e sobre sua visão do futuro. Essas narrativas incluem histórias de grandeza e heroísmo, ou de dor e sofrimento.
A população de Javé, ao tomar conhecimento da
construção da hidroelétrica, fica revoltada e busca um meio de preservar a sua
terra. Zaqueu, narrador da história, explica ao povo que a cidade só não será
inundada se tiver algum patrimônio, algo importante, ‘história grande’, segundo
os engenheiros da hidroelétrica. Contudo, os moradores não têm nada material
que registrasse a história da cidade, visto que quase todos são analfabetos. Isso
poderia ser interpretado como um descompasso civilizacional, devido às
desigualdades socioeconômicas e aos descasos anteriores dos governos e autoridades,
porém, também revela que a escrita e leitura, no dia a dia desses moradores,
não tinham serventia prática e costumeira. Como diz o personagem Antônio Biá:
“— Não existe nada de importante para ser registrado nesse fim de mundo”.
Nesse ponto, percebemos o conflito entre uma concepção
de História oficial, pautada na tradição escrita do papel como documento válido
e científico e a tradição oral do povo, suas histórias, suas memórias,
vivências. Os moradores têm consciência de que são despossuidores dos
conhecimentos formais de comunicação e atribuem importância ao registro escrito
por saberem que os donos da hidroelétrica prestigiam o poder do papel como valor
de verdade e de autoridade. Então, surge a ideia de registrar a fundação da
cidade no “Grande Livro da História de Javé”, provando que ela é um patrimônio
importante.
Mas, há um impasse, “— e como vamos juntar as
histórias, se elas estão na cabeça?”, diz a personagem Maria. Para realizar a
tarefa de ouvir as narrativas do povo e passá-las para o papel, caberá a
Antônio Biá, único morador com domínio da escrita, malandro talentoso em
inventar histórias. Biá é odiado em Javé, pois espalhou cartas difamatórias sobre
os moradores da cidade para as localidades vizinhas, para garantir o seu
emprego no posto dos Correios. Biá é ‘catado’ pelos moradores e, depois de
relutar, aceita a épica tarefa de escrever a “História” de Javé, isto é, no
singular.
Então, Biá percorre a cidade, ouvindo os relatos dos
moradores. De modo bem humorado, ele entrevista Seu Vicentino, Deodora, Firmino
e Pai Cariá, além dos gêmeos e Daniel, em que cada personagem dará a sua versão
da fundação de Javé. Cada personagem quer atribuir uma importância a si em
relação à origem da cidade, ao narrar a história, de modo alegórico, afirmando
sua descendência dos heróis fundadores.
O primeiro entrevistado, seu Vicentino, diz ser
descendente de Indalécio, fundador da cidade, cavaleiro que remete a figura de
um São Jorge sertanejo. Indalécio liderava um grupo que esteve em guerra contra
a Coroa portuguesa que se evadiu para o sertão. É uma narrativa heroica, épica,
que relata os bravos feitos do fundador, sacralizando-o.
A segunda entrevista, Deodora, declara ser descendente
de Mariadina, verdadeira fundadora da cidade, porque, após a morte de
Indalécio, guiou e protegeu o povo no sertão. Ela encontrou e estabeleceu o lugar
que seria a futura Javé, e, em cima de um monte, cantou as divisas do povoado.
Ao contrário dessas versões heroicas e míticas, o
personagem Firmino conta uma narrativa paródica e humorada da fundação de Javé,
ao narrar que Indalécio morreu de dor de barriga, obrando, e que Mariadina era
uma louca, espécie de bruxa.
Em seguida, Antônio Biá é acompanha o personagem
Samuel a uma comunidade quilombola, próxima a Javé. O patriarca da comunidade, Pai
Cariá, narra, em iorubá, a fundação de Javé, descrevendo Indaleo (Indalécio de
sua versão) como um homem negro, jovem e forte, que guiou o seu povo até uma
cachoeira, casa de Oxum, mãe das águas. Samuel traduz para Biá a contação do
Pai Cariá, que, em transe, rediz as palavras de Indaleo: “— A África agora
estava ali com eles”. Isso enriquece as narrativas da fundação da cidade,
criando elos ancestrais com a África, gerando uma multiplicidade cultural.
Ao longo do filme, os personagens se zangam, pois Biá
ouve todos os relatos, mas não escreve nada. Indagado, ele diz que “— a
história é de vocês, mas a escrita é minha”. Mesmo procrastinando a tarefa por
esperteza, ele como um narrador percebe a multiplicidade de versões sobre a
fundação da cidade. Cada personagem dá uma versão do mito de origem, atribuindo
a si o protagonismo perante a comunidade. Portanto, o que era para ser a
“História” de Javé, torna-se dissenso, uma polifonia de vozes, uma disputa de
poderes simbólicos.
Essa ‘confusão’ de narrativas nos remete ao que diz o
pensador Walter Benjamin, no seu ensaio sobre o conceito de história, em que ‘a
história é objeto de uma construção, cujo lugar não é o tempo homogêneo e
vazio, mas um tempo saturado de agoras”. A multiplicidade dos fragmentos revela
memórias incompatíveis. Antônio Biá, ao ouvir o relato de Vicentino, declara
que ainda estava muito simples, que precisava acrescentar mais algo, pois “— uma
coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito.” Como arteiro cronista, ele constata
que há uma impossibilidade de uma única representação da história da origem de
Javé.
Ao longo do filme, como já foi citado, há esse conflito
entre a ideia e valorização de uma representação da origem da cidade como uma
história oficial, visto que os capitalistas, as autoridades só reconhecem o
valor de patrimônio a algo se houver documentos, registros materiais, provas
científicas. Porém, existem as experiências que o povo preservou através da
oralidade, da imaginação. A memória como um artifício da cultura mantém a
coesão de um grupo. Como diz o geografo Milton Santos, a cultura é o cimento
que une as pessoas.
Os conflitos existem no filme porque cada personagem
constrói um discurso de sua identidade individual como um símbolo da identidade
coletiva de Javé. Por isso, há pressa dos moradores em registrar suas
histórias, pois o que é o povo sem o relato das experiências de seus
antepassados?
Ambas são importantes, a fala e a escrita, pois são modos de comunicação, de continuidade de saberes, de tradições. A escrita servirá como o registro da oralidade, em que as narrativas dos outros serão lidas por outras pessoas além do tempo e do espaço. As narrativas preservam as experiências e saberes, mantendo as culturas vivas se forem passadas adiante, de geração em geração. Os moradores de Javé buscaram a salvação pela palavra. Mesmo sem ter êxito contra as águas, as palavras permanecem e permanecerão com eles, aonde forem, a dar corpo a novas histórias de migrações e de lutas. Essas são belas reflexões que o filme de Eliane Caffé proporciona continuamente.
Texto originalmente publicado no site Segunda Opinião, em 25/09/2020.
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