sábado, 30 de janeiro de 2016

Trechos 'Dos canibais", por Michel de Montaigne

MONTAIGNE, Michel. “Capítulo XXXI: Dos Canibais”. In: Ensaios. 1ª. Edição. Os Pensadores. Volume XI. São Paulo: Abril, 1972.


"Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo que morto, dilacerar com tormentos e martírios um corpo ainda cheio de vitalidade, assá-lo lentamente e arrojá-lo aos cães e aos porcos, que o mordem e martirizam (como vimos recentemente, e não lemos, entre vizinhos e concidadãos, e não entre antigos inimigos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de religião) que em o assar e comer depois de morto".



"Voltando ao meu assunto, creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas. Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso artifício e desviamos da ordem comum. Nos primeiros, as verdades são vivas e vigorosas, e as virtudes e propriedades mais úteis e naturais do que nos últimos, virtudes e propriedades que nós abastar damos e acomodamos ao prazer do nosso gosto corrompido. E, todavia, em diversos frutos daquelas regiões, que se desenvolvem sem cultivo, o sabor e a delicadeza são excelentes ao gosto, comparando-os com os nossos."

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