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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A NORMALISTA – A ATUALIDADE DE UM ROMANCE POLÊMICO

Charles Ribeiro Pinheiro

Qual a relevância do romance “A normalista”, publicado em 1893, por Adolfo Caminha, escrito nos moldes do naturalismo, no qual retrata, implacavelmente, os vícios, as tramas, os dessabores, a bajulação política, as aparências sociais, a maledicência, o escárnio e a hipocrisia da sociedade de Fortaleza? Ao observar a sua estrutura narrativa e seus temas, percebemos que “A normalista” se insere na tradição dos romances que não servem apenas para o entretenimento, mas como forma de sensibilizar o leitor e de levá-lo a conhecer as intricadas relações sociais que são representadas no papel. A seguir, traçaremos um breve perfil do autor e discutiremos questões literárias e históricas expressivas acerca do polêmico romance.

O escritor, nascido no Ceará, em 1867, após perder a família durante a seca de 1877, parte para o Rio de Janeiro. Ingressou na Escola da Marinha, de onde saiu como oficial, aos vinte anos, em 1887. No ano seguinte, transferiu-se para Fortaleza, onde se apaixonou por Isabel Jataí de Paula Barros, esposa de um oficial do exército. O episódio causou escândalo em Fortaleza, forçando-o a pedir demissão da Marinha e assumir o compromisso com Isabel. 

Nos primeiros anos da década de 1890, tem uma intensa atividade jornalística na capital cearense. Em 1891, funda a “Revista Moderna” e, no ano seguinte, participou da primeira formação da Padaria Espiritual, irreverente grêmio literário e artístico formando na Praça do Ferreira, liderada por Antônio Sales. Em seguida, retorna com a família para o Rio de Janeiro, onde atuou na imprensa carioca. Acometido de tuberculose, faleceu em 1897, aos trinta anos. A sua obra não é vasta, porém é muito significativa. Após a publicação de um livro de poemas “Voos incertos” (1886) e um de novelas “Judite e Lágrimas de um crente”(1887), e do diário “No país dos Ianques” (1894), publicou as suas principais obras: ‘A normalista” (1893), “Bom Crioulo” (1895), “Cartas Literárias” (1895) e “Tentação” (1896).


No Rio, enquanto colaborava no jornal Gazeta de notícias, publicou “A normalista”, inspirado nas narrativas dos escritores franceses Émile Zola e Honoré de Balzac e, segundo o próprio autor, num artigo do livro de crítica “Cartas Literárias”, é uma “singela narrativa de um escândalo de província” que retrata “com firmeza de observação, levemente penumbrada de um pessimismo irônico e sincero, que está no meu próprio temperamento” (CAMINHA). 

Como salienta o pesquisador Sânzio de Azevedo, o romance “é um retrato cruel da provinciana Fortaleza”, em que a cidade é apresentada repleta de tipos mesquinhos, hipócritas, frívolos e degenerados. É óbvio que Adolfo Caminha teceu um projeto ficcional, contudo não se pode ignorar o fato acontecido na sua vida. Como mencionado, anos antes, o escritor envolveu-se com uma mulher, cujo marido era oficial do Exército, e Adolfo Caminha era oficial da Marinha. Nessa época, essas instituições tinham rivalidades políticas. A publicação de A Normalista provocou alvoroço e reacendeu a cólera dos seus inimigos do Ceará. Segundo Frota Pessoa, seu amigo e biógrafo, no livro “Crítica e polêmica” (1902), a polemicidade do livro se deve porque Caminha “ferreteava individualidades poderosas fotografando com uma verdade crua uns certos aspectos da sociedade cearense” (PESSOA). Ou seja, representa Fortaleza, durante os anos de 1888 a 1889, com as suas mazelas e podridões morais e a estética naturalista foi adequada, pois o escritor utilizou seus pressupostos para embasar o seu enredo. 

O Naturalismo surgiu na França, a partir da década de 1860, com o escritor Émile Zola e foi uma tentativa ambiciosa de aproximação entre a Literatura e a Ciência. Para Zola, o romancista naturalista atribui a si uma missão científica ao observar a sociedade para tentar transcrevê-la em suas obras. Não deixando espaço para o embelezamento da realidade, o olhar do escritor naturalista é um olhar cru sobre o mundo que não hesita em revelar toda a sua feiura.

Portanto, do ponto de vista científico, não havia temas morais ou imorais. No romance seguinte, “O Bom crioulo” (1895), Adolfo Caminha explorou ainda mais o naturalismo, ao narrar a história de um marinheiro negro e homossexual que nutre um caso amoroso por outro marinheiro, aperfeiçoando sua crítica social.

O mote que move a narrativa de “A normalista” é abuso sexual que João da Mata pratica contra a afilhada, Maria do Carmo. Ela, estudante da Escola Normal, foi criada pelo padrinho, depois que perdera a mãe na grande seca de 1877. Aos quinze anos, chamava a atenção de toda a cidade, pois, era “uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, morena-clara, olhos cor de azeitonas, carnes rijas” (CAMINHA). Ela era ingênua e sonhadora e namorava Zuza, estudante de direito, filho do coronel Souza Nunes. Ele é descrito como “um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurídica, frequentava o palácio do presidente…” (CAMINHA).

Repleto de ciúmes e obcecado pela afilhada, João da Mata usa dos mais variados meios, incluindo chantagens psicológicas e seu poder masculino, para seduzir a afilhada, sem que sua esposa ou outras pessoas desconfiassem. Segundo o narrador do livro, Maria do Carmo “para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe cegamente, com a resignação indolente e fria, duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? (CAMINHA). Acuada, Maria do Carmo foi escravizada pelos caprichos perversos do padrinho, mesmo tendo “ímpetos de reagir com toda a força do seu pudor revoltado” (CAMINHA). A personagem tinha sonhos em concluir seus estudos na Escola Normal, casar-se com Zuza, ter uma casa elegante e participar da vida social da cidade, enquanto o padrinho, como um animal no cio, estava obcecado em deflorá-la até conseguir. 

A cidade de Fortaleza não é apenas cenário, mas um grande personagem do romance, e nesse período, como assinala o historiador Sebastião Rogério Ponte, em “Fortaleza Belle Époque”, enquanto ocorria o crescimento comercial e a concentração de capital, havia por parte da sociedade, a tentativa de assimilar padrões de comportamento e valores da burguesia europeia, vista como modelo.

A casa de João da Mata, em que ocorre os pormenores da ação dramática, é descrita como “uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e donde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité” (CAMINHA). Só nessa passagem, do primeiro capítulo do romance, observamos dois lugares, a Rua do Trilho (atual rua Tristão Gonçalves), em que passava o trem vindo da Estação ferroviária, que hoje fica na atual Praça Castro Carreira. A modernidade estava diante da casa de João da Mata, simbolizada pelos caminhos abertos pelo progresso, mas também o seu aspecto negativo através da sujeira oriunda da fuligem dos trens. 

Outros logradouros que aparecem na história: a Escola Normal, A Igreja do Coração de Jesus, o Colégio da Imaculada Conceição, a Igreja do Patrocínio, o “Casarão do Governo” (atual prédio da Academia Cearense de Letras), o Passeio Público, a Praça do Ferreira e a rua Formosa (rua Barão do Rio Branco). Nessa cartografia literária, é representada “a vida ruidosa e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vícios inconfessáveis” (CAMINHA). 

A crítica à cidade é endossada com maior veemência pelo personagem Zuza. Vítima das fofocas do “Ceará Moleque”, considerava a província estúpida, “uma terra de bugres… […] em que só se fala nas secas” e que “estava doido por se ver livre de semelhante canalhismo” (CAMINHA). Zuza era um modo do autor dar voz a sua indignação, para tecer uma visão negativa e demonstrar o descompasso de Fortaleza em relação ao processo de modernização, de inspiração eurocêntrica, de outras cidades, a exemplo do Recife.

A tensão civilizatória existente no romance ocorre, pois, materialmente, a província é constituída por avenidas largas, praças ornamentadas, trens, navios a vapor, jornais, mas, na esfera da vida privada, é moralmente hipócrita, em que os abusos, as violências, a patifaria e a fofoca imperavam. O escritor escolheu o tom ácido, combativo e sarcástico para reconstituir meticulosamente essa vida urbana. O desejo de ascensão social, as intrigas políticas e partidárias, as intrincadas relações familiares e afetivas e os escândalos existentes nas classes médias e nas mais endinheiradas são temas que continuam atuais. Adolfo Caminha contribuiu notavelmente para enriquecer e diversificar a ficção desenovista brasileira.

*Texto originalmente publicado no site Segunda Opinião, em 22/10/2020, disponível em: 




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